sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Imagem de Deus no homem



IMAGO DEI*
(Guilherme de Carvalho)


A ENFERMIDADE EXISTENCIAL DO SER HUMANO EM NOSSA CULTURA

Qual o significado da imagem de Deus no homem? A falta de entendimento desse tema no meio cristão, sem mencionar em nossa cultura, é tão grande que seu ensino deveria ser, repetidas vezes, retomado. Certa ocasião, impressionou-me a reação do público a um ato trágico de crueldade cometido por uma enfermeira contra um animal. Grande quantidade de pessoas afirmou que ela deveria passar pelo mesmo tipo de morte com que matara o cachorro. Esse caso revela que ao mesmo tempo em que existe em nossa sociedade um senso enorme e reprimido de justiça, existe também grande desentendimento sobre assuntos como dignidade humana, justiça e direito. 

É verdade que a Bíblia afirma que Deus vai requerer do homem o sangue derramado de homens e de animais (Gn 9.5), mas o fato de as pessoas pedirem a morte de alguém numa situação trágica como esta e, em outra ocasião, posicionarem-se de forma hipócrita contra a pena de morte revela uma forma dupla de julgamento e grande incompreensão do que significa ser humano. Eu me arrisco a dizer que quase ninguém sabe mais o que significa ser gente.  Afinal, qual a diferença entre seres humanos e animais? Por que as pessoas sentem tanta ira contra algumas formas de abuso, mas não contra todas as formas de abuso?

Francis Schaeffer, pensador cristão do século 20, comenta em um de seus livros que nossa sociedade passou a encarar como normal certas coisas que foram rejeitadas há séculos pela cultura ocidental. Por exemplo, aborto e infanticídio eram práticas comuns no império romano. Tanto se podia livrar de uma criança indesejada pelo aborto como se podia expô-la em frente da casa para alguém levá-la ou era permitido abandoná-la em cima de um morro para algum animal devorá-la.  Essas e outras práticas (como a de se livrar de idosos e doentes) só foram proibidas por causa da influência do Cristianismo e da pressão da igreja depois do século 3. Por exemplo, existem registros de pena de excomunhão por dez anos e, mais tarde, até o dia da morte, para quem praticasse aborto. Mas, hoje, coisas que haviam sido abolidas em nome da dignidade humana e da autonomia do indivíduo têm sido simplesmente ressuscitadas em nossa cultura.

A equalização do ser humano com os animais é uma dessas práticas. Recentemente, um conhecido filósofo de moral cunhou a expressão ‘especismo’ para denominar algo semelhante ao racismo. Racismo é discriminar alguém por causa de sua cor, e especismo combate a ideia de que os ‘filhotes’ ou seres humanos teriam mais valor que as outras espécies da natureza. Ele defende que todos teriam o mesmo valor. Perceba que tal manifestação é sintomática, pois revela uma enfermidade profunda e existencial: a perda de autoconhecimento pela qual o ser humano passa no ocidente. O homem não sabe mais quem ele é nem qual sua vocação no mundo. No caso da enfermeira, em vez de as pessoas ficarem indignadas com a desumanização do ser humano, ou seja, por seu comportamento menos que humano, a preocupação foi com o animal em si.  Mas a sua situação dela é trágica como ser humano, seja em termos mentais, morais ou jurídicos. O pensamento dominante por trás de tudo isso é a igualdade entre seres humanos e animais. 

A IDENTIDADE HUMANA E O CONHECIMENTO DE DEUS SÃO INDISSOCIÁVEIS

A imagem de Deus no homem é um dos assuntos centrais em Gênesis 1 a 11. Na verdade, a identidade humana não pode ser recuperada sem o conhecimento de Deus. Ninguém sabe o que é ser humano sem estabelecer uma conexão entre Deus e o homem. Não se pode reter a imagem humana sem uma visão clara de Deus porque a identidade humana e o conhecimento de Deus são indissociáveis. Essa é a tese que desejo enfatizar neste artigo.

Gênesis 1. 28-28: E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.

Gênesis 2. 7-9:  formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.
E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, do lado oriental; e pôs ali o homem que tinha formado.
E o Senhor Deus fez brotar da terra toda a árvore agradável à vista, e boa para comida; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.

Gênesis 2. 15-18: E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.
E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás. E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele.

Gênesis 2. 21-24: Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.

Gênesis 5. 1-2: Este é o livro das gerações de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. Homem e mulher os criou; e os abençoou e chamou o seu nome Adão, no dia em que foram criados.
Gênesis 9. 6-7: Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem. Mas vós frutificai e multiplicai-vos; povoai abundantemente a terra, e multiplicai-vos nela.


As passagens acima são fundamentais para entender o significado da imagem divina no homem. Aliás, os capítulos 1 a 11 de Gênesis podem ser considerados a pré-história dos atos revelatórios e especiais de Deus.  O entendimento de que o homem foi criado à imagem de Deus é essencial para compreender todo o restante de Gênesis, todo o Pentateuco e o restante do Velho Testamento, e todo o Novo Testamento.

Por exemplo, em Gênesis 12 temos a história de Abraão que marca o pacto da promessa, o princípio da revelação da salvação pela graça que Deus traria para toda a humanidade e não apenas para um grupo seleto. O pacto abraâmico é citado várias vezes por Paulo no Novo Testamento como sendo cumprido na pessoa de Jesus Cristo, o foco dessa aliança. É impossível entender a aliança abraâmica sem entender Gênesis 1-11. Abraão foi levantado para trazer bênção a todas as nações, porém, antes dele temos a tábua das nações que descenderam dos filhos de Noé. Gênesis 11 mostra como os homens, liderados pelo poderoso caçador Ninrode, rei de Babel, tentaram resistir à ordem divina de se espalhar pelo mundo. A ideia era construir um centro de poder militar e religioso. Por isso, Deus desce e confunde as línguas para preservar as nações espalhadas sem o controle tirânico de Ninrode, inimigo de Deus. Portanto, Gênesis 1 a 11 é a história de como Deus cria o homem à sua imagem e semelhança para ser seu representante divino no mundo, e de como Deus trouxe à luz as nações para que pudesse, do meio delas, levantar Abraão e a partir de sua família abençoar os povos que haviam sido espalhados.

Sem o entendimento desses capítulos de Gênesis, o ensino do Novo Testamento sobre salvação pela graça fica obscuro e sem significado para o cristão. A salvação está relacionada com a criação. Deus veio em carne para salvar o que ele havia criado. A amplitude do seu entendimento da graça corresponde à amplitude do seu entendimento da criação. Sem entender o que Deus criou e com que propósito, você não entende o que Jesus veio fazer aqui. Infelizmente, a maioria dos cristãos está perdida em relação ao significado de sua fé.

A obra de Jesus é tão ampla que Paulo afirma em 1 Coríntios 15.45-47 que Jesus é o último Adão e o segundo homem. Se segundo homem (ou novo homem - kairo anthropos - de Efésios 4.24) é um dos títulos de Jesus, torna-se necessário entender o que é o homem. Para pensar sobre isso, podemos usar duas referências: ou olhamos para nós mesmos ou olhamos para o homem Jesus que tem muito para nos ensinar sobre o que é ser um verdadeiro homem. Salvação não é uma evasão do mundo, é uma restauração do que Deus fez nos primeiros capítulos de Gênesis. Ser um cristão autêntico é ser um homem autêntico. Ser um não-cristão é ser um ser humano inautêntico. É errado pensar que os não-cristãos são seres humanos e que nós cristãos, além de seres humanos, somos também cristãos, como se tivéssemos um plus que é a graça. Todos nós somos menos que humanos se estamos em pecado e afastados de Deus.

Como assim? - você pode perguntar. É verdade que todo mundo é ser humano, até quem não crê em Jesus, mas você precisa entender que a identidade humana é diferente de ser humano. Mesmo sendo feito à imagem de Deus, o ser humano pode ficar confuso sobre sua identidade. Por exemplo, você já viu um passarinho em crise sem saber se é um gato ou um cachorro? Ele não sobe num pinheiro e fica se questionando: E agora? Que vou fazer de minha vida? O passarinho é o que chamamos na biologia de um ser senciente, pois tem ciência do mundo, mas não de si mesmo. Sua identidade e natureza são indissociáveis. Diferentemente do homem, ele não possui liberdade moral de autodeterminação. Já o ser humano é um ser consciente, pois tem capacidade de reflexão. O homem sabe que sabe, não apenas sobre o mundo, mas sobre si mesmo. Diferentemente de um passarinho ou um cachorro, o ser humano pode ficar confuso sobre sua identidade e pensar que não passa de um animal avançado ou de uma pilha de moléculas.[continua...]

*(Este artigo foi escrito por Elenir Eller Cordeiro baseado numa mensagem ministrada por GUILHERME DE CARVALHO, teólogo, pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, palestrante e diretor do L´Abri Brasil.)

Baixa Grande, BA, setembro de 2014.

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